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segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

OPINIÃO

Leitura das leis
Não é por falta de leis que todos esses problemas têm ocorrido, mas pela falta
de leitura rigorosa da legislação em vigor

Autor: Edésio Fernandes - Jurista e urbanista


No país onde todos se referem a tudo o que é bom como "legal", não causa
surpresa a notícia de que uma das principais respostas das autoridades federais
aos trágicos acontecimentos resultantes das chuvas é a de propor a aprovação de
uma nova lei federal. Trata-se de mais um capítulo na tradição legalista do
país, no qual quase todos apostam no poder messiânico de transformação das leis,
sem compreender criticamente como, diretamente ou por falta de aplicação das
leis progressistas, a ordem jurídica elitista e burocrática – longe de resolver
problemas e conflitos – tem historicamente criado muitos dos problemas sociais e
processos de ilegalidade urbana.


Embora certamente existam áreas de risco onde condições intrínsecas de diversas
ordens fazem com essas áreas sejam totalmente incompatíveis com a ocupação
humana, o fato é que talvez na maioria das situações existe um equilíbrio
possível entre preservação ambiental e ocupação humana, sendo que os problemas
causados pelas fortes chuvas e outros desastres naturais têm com frequência mais
a ver com a falta de "gestão do risco". Terremotos de alto grau no Chile, Japão
ou São Francisco certamente causam danos materiais, mas um número bem menor de
mortes do que terremotos em menor escala na Turquia ou na China. A diferença é
resultado da qualidade das políticas de gestão do risco entre esses países. A
maioria das mortes resultantes das tsunamis no Chile e no Sudeste Asiático teve
a ver em grande medida com a falta de/falha dos sistemas de alarme. Já as mortes
causadas pelas enchentes no Sul da França em 2010 parecem ter sido devidas à
ocupação, facilitada pelas práticas de clientelismo político, de áreas
inundáveis notoriamente inadequadas para qualquer tipo de presença humana. Esse
equilíbrio entre preservação e ocupação tem sempre que levar em conta as
possibilidades e custos da utilização de novas tecnologias: face ao processo de
aquecimento global, mais do que nunca, Veneza, a cidade impossível que não teria
nunca existido se dependesse dos planejadores urbanos e ambientalistas, enfrenta
o desafio renovado, enquanto novas construções costeiras na Holanda terão que
utilizar tecnologias de ponta que permitam sua "flutuação" no caso de elevação
do volume da água do mar.


No caso brasileiro, há certamente diversas áreas de risco, mas há seguramente um
problema muito maior de falta de gestão do risco, o que faz com que em muitos
casos não exista um equilíbrio adequado entre preservação ambiental e ocupação
humana, penalizando especialmente os mais pobres, mais vulneráveis que são aos
desastres naturais. Em muitas áreas de ocupação consolidada, não há sistemas de
drenagem e escoamento de águas pluviais, estratégias de permeabilização do solo
e plantio sistemático de árvores; não há políticas de saneamento, coleta de lixo
ou mesmo limpeza regular de bueiros; não há construção ou manutenção de muros de
arrimo e outras obras de contenção de encostas e rios; não há controle das
construções, especialmente das fundações e da qualidade construtiva; não há
sistemas de prevenção de desastres, nem sistemas de alerta como meras sirenes ou
alto-falantes que podem salvar vidas. E por aí vai...


Pelo contrário, o padrão precário de ocupação urbana e a falta de presença do
poder público têm mesmo transformado áreas sem maiores problemas ambientais
intrínsecos em verdadeiras áreas de risco – basta ver os danos e as mortes
regularmente causadas pelas enchentes no Centro de São Paulo, ou como bairros
inteiros na periferia de São Paulo ficam alagados por meses sem por isso
provocarem (como deveriam) uma comoção social. A legislação brasileira
urbanística e ambiental em vigor certamente merece ser aprimorada, contudo, deve
ser dito que não é por falta de leis que todos esses problemas têm acontecido,
mas, pela falta de leitura rigorosa das leis em vigor, e, sobretudo pela falta
de sua aplicação efetiva. Mesmo para a responsabilização civil, administrativa e
criminal dos agentes públicos e privados, o Código Civil e as leis urbanísticas
e ambientais já dispõem de um arsenal de instrumentos: não vai ser uma nova lei
federal que vai significativamente mudar esse quadro.


Se não for mesmo possível distinguir situações consolidadas de situações
futuras, e se de todo preservação ambiental e ocupação humana não forem
compatíveis em algumas áreas, que os critérios jurídicos sejam os mesmos para
todos: os dados indicam que 70% das encostas do Rio de Janeiro não são ocupadas
por pobres, ainda que a densidade da ocupação dos assentamentos informais seja
muito maior. O mesmo vale paras as faixas costeiras. Se de todo a remoção de
ocupantes das áreas afetadas for inevitável em casos extremos, que seja feita de
maneira articulada com alternativas negociadas e aceitáveis de moradia, como já
manda a lei em vigor. Há riscos, mas há, sobretudo gestão dos riscos. Mais do
que mais legislação apressada, precisamos é de uma boa leitura das leis
existentes, e de muito mais ação político-institucional para que sejam
aplicadas.


Fonte: Jornal Estado de Minas – 07/02/2011

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