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(In) observância dos precedentes em recursos repetitivos: automatismo e duplicação dos julgamentos nos tribunais ordinários |
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Elpídio Donizetti.
Desembargador
do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Mestre em Direito pela PUC/MG.
Integrante da comissão de notáveis designada pelo Senado Federal para elaboração
do anteprojeto do novo Código de Processo Civil. | |
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Desde os bancos da faculdade, a surrada
lição é passada quase da mesma forma: "a sentença é a lei do caso concreto".
Esse brocardo evidencia que a atividade judicante é indissociável dos fatos. O
julgador não se expressa sobre situações abstratas, as quais demandam termos de
sentido genérico. Essa técnica de expressão é própria dos legisladores.
O estudo das decisões judiciais ganhou
relevo com a adoção de mecanismos que conferem força vinculativa aos
pronunciamentos jurisdicionais, como os enunciados de Súmula Vinculante e os
julgamentos paradigmáticos em Recursos Extraordinários e Especiais (arts. 543-A
a 543-C do CPC).
Referidos institutos respondem às
peculiaridades da sociedade de consumo, notadamente o fenômeno dos conflitos de
massa. Em razão disso, impõe-se que a ratio
decendi de casos anteriores tenha carga hermenêutica suficiente para ser
universalizada.
Contudo, diante da jurisprudência
vinculativa, não se pode olvidar que ela também está sujeita às técnicas de
subsunção e interpretação das quais os juízes se valem, sem nenhum
constrangimento, para aplicar a lei. Afinal, uma vez que se superou o paradigma
do juiz da Revolução Francesa, mera "boca da lei", não faz sentido proclamar a
independência do magistrado em face do legislativo para amordaçá-lo perante a
segmentos do judiciário.
Vez ou outra,
recebo do órgão incumbido do juízo de admissibilidade dos Recursos
Extraordinários e Especiais os autos de recursos de minha relatoria, já
julgados, para confronto da tese aplicada pela Câmara com aquela definida pelos
Tribunais Superiores, tudo conforme as disposições dos arts. 543-B e 543-C.
O procedimento é bem simples: interposto
o recurso extraordinário (em sentido lato), o órgão incumbido do exame de sua
admissibilidade, verifica-se se há divergência entre o acórdão recorrido e o
julgamento do recurso extraordinário ou especial representativo da
controvérsia. Em caso de divergência, o recurso é sobrestado e os autos
retornam ao relator do acórdão recorrido,
para retratação ou manutenção do julgado.
Aqui compartilho uma constatação
curiosa: ainda que contrária ao ordenamento jurídico, para que a decisão
alcance foros de definitividade (no sentido de definição do litígio), basta externar as razões do meu convencimento
uma única vez. Mas, para contrariar o entendimento dos Tribunais Superiores,
exigem-se duas manifestações. Um para resolver o litígio e outra para reiterar
que, por uma circunstância ou outra, estou "desobedecendo" a jurisprudência do
STJ ou do STF. Trata-se de verdadeiro alerta ao magistrado recalcitrante: "Veja
bem, não percebeu a orientação dos Tribunais Superiores?" Você tem a petulância
de insistir nesse grave equívoco?
O que é mais grave, é que está virando
rotina ter que fazer dupla análise dos casos sob julgamento nos tribunais
ordinários. No tribunal das Gerais, onde tenho a honra de atuar, não raro
recebo para novo exame, casos em que o recurso especial ou extraordinário é
manifestamente inadmissível - seja por ausência de pressupostos intrínsecos ou
extrínsecos, hipótese em que qualquer prolongamento da relação processual
poderia afrontar a coisa julgada. Além
disso, em outras ocasiões, quando se faz necessária a nova análise do caso,
observo que o julgamento paradigma não guarda semelhança fática com a decisão
impugnada. Creio que o problema está na forma em que é feito o juízo de
admissibilidade nesses casos.
É certo que o art. 542, §1º, do CPC,
prevê que, recebida a petição do recurso extraordinário ou especial pela
secretaria do Tribunal de origem, será intimado o recorrido, abrindo-se-lhe
vista, para apresentar contrarrazões. Findo esse prazo "serão os autos conclusos para admissão ou não do recurso, no prazo de 15
(quinze) dias, em decisão
fundamentada", pelo presidente ou vice-presidente do tribunal de
origem (art. 541, caput).
Por outro lado, os artigos 543-B, §4º, e
543-C, §8º, ambos do CPC, determinam novo juízo de admissibilidade, desta vez
nos Tribunais Superiores, caso mantida pelo tribunal de origem a decisão
contrária ao julgamento dos recursos múltiplos, como explicitamente mencionado
no art. 543-B, §4º, e como inferido pelo
regramento do art. 543-C, §8º.
Surpreendentemente
e sem maiores justificativas, o juízo de admissibilidade que deveria ser
realizado 15 dias após a apresentação das contrarrazões pela parte recorrida,
não vem ocorrendo, sendo o recurso sobrestado, independente da presença dos
pressupostos intrínsecos ou extrínsecos, e o juízo de admissibilidade realizado
pelo tribunal de origem apenas após a confirmação do acórdão divergente pela
câmara julgadora.
Ora, ainda que se aceite a realização do
juízo de admissibilidade pelo tribunal de origem após reiterado o acórdão
divergente, deve o juízo de admissibilidade continuar a ser feito no momento
estabelecido pelo art. 542, §1º do CPC: logo após o oferecimento das
contrarrazões, sob pena de submeter a novo juízo do relator inclusive decisões
já acobertadas pela res judicata. Vou além. Esse juízo de admissibilidade,
afora os pressupostos inerentes aos recursos, deve levar também em conta as
técnicas de confronto e aplicação do precedente, sob pena de cair no
automatismo judicial já mencionado.
A doutrina brasileira, buscando
elementos no direito anglo-saxão, aponta o distinguishing
(do
verbo distinguish, que significa
distinguir) como a situação em que, em razão da diversidade dos fatos
discutidos na tese piloto e no caso em que ela foi invocada, não será possível
a sua aplicação.
Duas soluções são apresentadas: ou se
reconhece que a ratio decendi do julgamento
paradigma não alcança o caso concreto; ou se entende que, a despeito das
particularidades observadas, o precedente é aplicável, pois contém argumentos
que superam as distinções fáticas.
Seja qual for o caminho adotado, é
importante frisar que a massificação das decisões judiciais não desvinculou o juiz
do contato com os fatos, com a causa de pedir remota, elemento da demanda que
mais se aproxima da parte.
Nesse contexto, não pode o órgão
responsável pelo juízo de admissibilidade contentar-se com a mera identificação
superficial de semelhanças entre o julgamento proferido em recurso
representativo da controvérsia e aquele objeto da irresignação recursal, para,
então, simplesmente, sobrestar o recurso. Afinal, o art. 542, §1º, do CPC,
ainda está em vigor, mostrando-se absurdo movimentar toda a máquina judiciária
e exigir gastos das partes para, apenas depois de mantido ou reformado o
acórdão divergente, concluir-se pela inadmissibilidade do recurso,
desperdiçando todo esse esforço.
É preciso construir uma interpretação
construtiva e integrativa, que estabeleça coerência entre o art. 542, §1º e os
arts. 543-B, §4º, e 543-C, §8º, todos do CPC. Entendemos que o juízo de
admissibilidade nesses casos foi cindido em dois momentos. Na primeira
oportunidade, deve o Tribunal de origem, ao receber o recurso, após a
apresentação das contrarrazões, manifestar-se sobre todos os requisitos de
admissibilidade do recurso, incluindo sua (in)adequação ao paradigma. Em um
segundo momento, caberá ao Tribunal Superior, caso o Tribunal de origem
mantenha sua decisão, reavaliar o cumprimento dos requisitos de admissibilidade
pelo recorrente e, se for o caso, proceder ao julgamento do mérito
recursal.
O
que não deve prosperar é um procedimento de devolução autômata dos autos às
Câmara de Julgamento diante de mera possibilidade de afronta ao
precedente, duplicando-se o volume de
trabalho e, mais importante, atrasando a efetivação dos pronunciamentos
judiciais.
Jornal Carta Forense, sexta-feira, 2 de setembro de 2011
http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=7574