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quarta-feira, 11 de abril de 2012

PESQUISA JURÍDICA

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ENTREVISTA
Pesquisa Jurídica

Entrevistado
Marcelo Lamy
Advogado. Doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP. Mestre em Direito Administrativo pela USP. Professor do Mestrado em Direito da Unisantos. Diretor da Escola Superior de Direito Constitucional. Professor de Direito Constitucional e de Metodologia do Trabalho Científico da Unisantos e da Faciplac. Autor do livro: Metodologia da Pesquisa Jurídica (Editora Campus-Elsevier).
Com o aumento de profissionais do Direito nos cursos de pós graduação e a exigência das monografias de final de curso aos bacharelandos, a quantidade de pessoas fazendo pesquisa jurídica aumentou muito. Como anda a qualidade destas teses produzidas?
A consolidação da exigência dessas monografias constitui passo significativo para aperfeiçoar a educação. Os cursos superiores não podem se limitar a ser espaços passivos (onde simplesmente transmitem-se conteúdos), devem assumir o papel de disciplinar o pensamento, tem de ser meio de aculturação, de aprendizagem sobre o pensar. As monografias, nesse sentido, podem ser instrumentais eficazes para esse percurso, desde que incorporem os propósitos da pesquisa. Sob esse último aspecto, ainda nos resta um longo caminhar. Muitas monografias desenvolvem estudos (resumos ou compilações sobre algum tema) e não propriamente pesquisas (perguntas dantes não perguntadas, respostas inovadoras).
Quais sãos as peculiaridades da pesquisa jurídica?
As marcas da historicidade e da ideologia estão alojadas no interior de cada objeto jurídico. A pesquisa jurídica, portanto, tem de desvendar esse elemento intrínseco. Mas só é possível revelar a realidade provisória de um instituto pelo contexto. É necessário, em consequência, que sempre se apresente a evolução histórico-ideológica. Por outro lado, não pode reduzir-se à tarefa de revelar o que se pensa e se pode pensar sobre algum objeto, tem de desvelar também como se vive concretamente o objeto estudado. A pesquisa jurídica alienada dessa dimensão significativa, a marca da praticidade, é no mínimo incompleta e provavelmente inútil.
Quais sãos as dicas que o senhor dá ao aluno para definir o tema da pesquisa?
É preciso alcançar uma etapa mais avançada: definir o problema da pesquisa. Desse passo depende a qualidade de todo o trabalho. Uma descoberta científica pode acontecer (e algumas vezes realmente acontece) por acidente. No entanto, rotineiramente advém de um problema bem desenhado e da dedicação em resolvê-lo.
Para tanto, convém seguir os seguintes passos: 1º PASSO: Escolher uma área temática (pelo interesse pessoal, pela paixão, em função das perspectivas profissionais, do efetivo material disponível). 2º PASSO: Ler artigos, anais de congressos e novas obras para escolher um tópico da área. 3º PASSO: Questionar o tópico com perguntas inovadoras (basta, em geral, observar eventuais contradições, inconsistências ou explicações incompletas em leituras exploratórias sobre o tópico). 4º PASSO: Identificar com maior detalhamento e precisão o que preciso aprender ou descobrir sobre o tópico, ou mesmo provar (se já tiver despertado em mim alguma resposta ou solução inovadora - o que a metodologia chama de hipótese). 5º PASSO: Identificar por que esse aprendizado é relevante, qual seria o resultado dessas descobertas ou de provar minha hipótese.
Qual a maior dificuldade que seus alunos enfrentam durante todo o processo?
O que paralisa muitos estudantes é a indefinição do objeto da pesquisa. Perdem-se muitas semanas com uma idéia absolutamente geral... Colocam em seus bolsos um tópico desfocado ao qual se dedicarão e, com esse panorama geral, ficam inativos, nem sabem por onde começar. Ao contrário, aquele que tem um "problema" e um "projeto" de pesquisa já consolidou mentalmente o que, como e quando tem de fazer. Torna-se ativo.
Em segundo lugar, os estudantes sofrem por não saberem organizar o tempo, deixam que o vento das ocupações defina quando se debruçarão nos estudos. Para se fazer pesquisa com prazo (realidade de todos) é preciso reservar um tempo ao menos semanal de dedicação ao mesmo.
A terceira maior dificuldade é a redação propriamente dita. Os estudantes não reservam tempo para essa etapa do processo e a consequência é fatal. A pesquisa mal redigida, sem a preocupação de convencer e persuadir honestamente, acaba por se tornar ineficaz ou até enfadonha. Não estou falando da correção ortográfica ou gramatical, mas da preocupação em sequenciar corretamente as idéias, em articulá-las, em inferir todas as consequências. Somente uma redação vagarosa e refletida pode apresentar um trabalho final de qualidade.
Poderia nos falar mais sobre a pedagogia da vitalidade, coragem, sensibilidade, inteligência e liberdade na pesquisa jurídica?
Para mim, essas pedagogias são uma explicitação de qual deve ser a postura de um pesquisador.
A vitalidade (prazer de sentir-se vivo) é necessária para que haja interesse pela pesquisa. A pesquisa sem entusiasmo sempre será fardo e não realização. Se a investigação que desenvolvemos não nos faz sentir vivos ou únicos não a faremos com afinco e nada nos acrescentará.
Há homens que "se acham" e precisam desapegar-se de si mesmos. Há homens que, inseridos na cultura do pecado, desprezam demais a si mesmos, vivendo pela opinião alheia. O primeiro não vê a necessidade de se enfrentar (por isso também desenvolve a covardia), o segundo não enfrenta os demais. Sem enfrentamento não há pesquisa, é preciso coragem para revelar nossos olhares preconceituosos ou para desvelar o olhar impositivo dos outros.
Muito sensíveis a tudo que afeta nosso eu (ou nosso eu ampliado: minhas coisas, minha família, meu trabalho etc.) e insensíveis ao que sai da nossa esfera pessoal (os outros), constituímo-nos em perspectiva equivocada, que não é capaz de revelar novas realidades. A preocupação da pesquisa coloca-se em outra perspectiva: longe de nossas idiossincrasias e longe das ideologias alheias, no "entre". É preciso construir essa sensibilidade adequada para fazer a pesquisa.
O pesquisador, para adquirir legitimamente esse epíteto, tem de tornar-se curioso (abrir-se continuamente para a dúvida) e aprender a adquirir sozinho novos conhecimentos (sem repetir irrefletidamente os seus conhecimentos antigos, tampouco mimetizar os dos outros). Enfim, tem de cultivar a inteligência, o "into-legere", o ler dentro das coisas, nem em si, nem nos outros.
Por último, o autômato tem paralisia mental. O homem manipulado pelo consumismo, pela moda, pelos ideais modernos de sucesso não enxerga mais, não percebe mais a realidade enevoada por essas influências. Somente quem se libertou das próprias manipulações e das alheias consegue desenvolver pesquisa. Paradoxalmente, quem desenvolve pesquisa um dia ou outro aprenderá o que é pensar livremente.
Qual o procedimento para coleta de material?
O grande erro de muitos é simplesmente sair (física ou virtualmente) em busca de textos sobre o tema. Juntam-se, em geral, pilhas de fontes e o desespero começa a aparecer. Antes de coletar o material é preciso ter, em primeiríssimo lugar, lucidez sobre quais são as dúvidas que quero esclarecer (minhas perguntas) ou sobre o quero demonstrar (minhas respostas provisórias). O material coletado deve ser apenas o que colaborar na necessidade da pesquisa. Depois disso, uma dica se faz necessária: é preciso dedicar tempo com textos de qualidade e descartar sem remorsos os demais. Somente bons materiais despertam boas idéias ou boas soluções. Nesse sentido, umas dicas complementares: os clássicos não se tornaram clássicos à toa; quem redigiu no passado uma ideia que é referência em um estudo, certamente explica melhor essa ideia do que os intérpretes futuros (vá à fonte original).
O senhor alerta no seu livro para o cuidado com as fontes eletrônicas. Pode nos explicar melhor quais são os cuidados necessários?
Quando todos são autores, autoridades e sábios, não há mais referência segura. Assim, devemos aprender a selecionar as fontes eletrônicas confiáveis, a investigar a qualidade dos materiais eletrônicos. O mundo atual permite que façamos muitas pesquisas pela internet, mas é necessário verificar se o texto consultado tem qualidade afiançada. Dou um exemplo: há revistas científicas maravilhosas e muito sérias que disponibilizam o seu conteúdo na internet, esse material é absolutamente confiável; mas há diversos sites que simplesmente replicam tudo o que se fala, ou se posta, não há como aferir se realmente o postado corresponde à realidade ou se é exato.
Como definir o que é e o que não é científico na pesquisa jurídica?
O qualificativo científico tem de ser atribuído a qualquer pesquisa jurídica que "apresente novos ou renovados conhecimentos de forma objetiva e verificável". Um novo conhecimento trata-se de uma descoberta teórica ou prática, um conhecimento renovado consiste em um novo olhar sobre o que se apresentava (a ambas possibilidades podemos atribuir a marca da originalidade). A objetividade e a verificabilidade exigem as seguintes marcas indeléveis: coerência lógica (não apresenta contradições, as conclusões advêm dos pontos de partida), consistência (firmeza das idéias que resistem às contraprovas e aos contra-argumentos), objetivação (honestidade ao revelar as pressuposições ou ideologias condicionantes da análise). A academia exige, por fim, a marca da intersubjetividade (que se estabeleça um diálogo com os pares, com outros pensadores).
O que o senhor quer dizer com "pensar em suspensão"?
Nosso pensar linear produz o seguinte resultado: quando chegamos a uma conclusão, paramos de pensar no assunto. O pensar em suspensão (expressão emprestada do filósofo espanhol Alfonso López Quintás) é o único pensar compatível com a ciência, que sempre é provisória, que nunca termina. Karl Popper tem um exemplo genial dessa forma de pensar necessária para o pesquisador: a água, em condições normais de temperatura e pressão, ferve aos cem graus centígrados, por enquanto. Por enquanto? Sim. Enquanto não descobrirmos que é por qualquer outro motivo. Isto é pensar em suspensão.
A ciência não pode aportar definitivamente, não tem um destino final. É um pensar em suspensão. Pesquisador, por sua vez, é quem aprendeu a viver segundo esse modo de pensar.
Qual são os efeitos da tirania de opinião durante a pesquisa?
Há duas tiranias possíveis: a da própria opinião e a da alheia. Achar que o padrão de julgamento próprio é o correto impede-nos de pensar. Passamos simplesmente a convencer, esquecemos que a pesquisa existe para outra coisa: para esclarecer. Por outro lado, se vivemos da opinião alheia, pelo aplauso ou pelo reconhecimento não estamos inclinados a contestar. Ao contrário ficamos neutralizados, com medo da inquisição moderna da opinião pública. Com tirania própria ou alheia não há discussão e sem ela jamais consolidaremos algo científico.
O senhor concorda que muitas vezes os orientadores enfiam goela abaixo do orientado temas que não eram a primeira opção? Isto não prejudica todo o processo?
É certo que todo orientador deve ter muito cuidado ao conduzir esse processo.
Há orientandos autônomos ou com potencial para incorporar essa característica. Esses devem ser apenas orientados e não conduzidos. Conduzir poderá ser não deixar nascer a intelectualidade legítima.
Há, no entanto, orientandos que precisam da condução até que adquiram experiência. A esses, o orientador deve dedicar um cuidado especial: despertar o interesse, a vitalidade para o tema sugerido. Se isto não for feito, o novo pesquisador viverá o fardo da pesquisa e não a alegria de descobrir novos mundos. O resultado é previsível: jamais voltará a pesquisar, salvo se obrigado.
Quais sãos os cuidados para  definir os termos utilizados?
Muitas palavras que utilizamos comprometem o nosso discurso porque podem gerar incompreensões ou imprecisões. Podem, por exemplo, dizer algo ao nosso olhar e outra coisa para o nosso leitor. Isto atrapalha o diálogo e é capaz de gerar muitas confusões. Há diversas palavras ou termos que dizem mais do que aparentam à primeira vista ou acentuam apenas um de muitos aspectos que a realidade designada oferece. Todos esses termos precisam ser definidos pelo pesquisador. Quando esses termos aparecerem, o pesquisador deve esclarecer imediatamente, em rodapé, o sentido em que os está utilizando.
O pesquisador tem de ser preciso na redação de suas pesquisas e o nosso instrumental, a língua, não é tão exato assim. Lembro-me, para ilustrar, dos exemplos de Jean Lauand, esse encantador professor de filosofia da USP: a salada (palavra derivada de sal) de frutas, que não tem sal... o tintureiro que agora lava roupas e não as tinge mais...
No seu livro o senhor fala sobre a diferença da crítica e do feedback. Pode nos explicar melhor?
Essas palavras são utilizadas por muitos como sinônimos práticos, mas, por outros, como duas categorias diversas de julgamento. À crítica atribui-se o significado de um julgamento negativo, pois é acusatório, rotulador, ridicularizador, que aponta apenas o errado. Ao feedback atribui-se o significado de um julgamento positivo, pois, apesar de discordar de algo, oferece informações que levem a rever o pensamento ou um comportamento, apontando o que se pode melhorar.
Como toda pesquisa, quando concluída, é colocada sob o crivo da análise ou do julgamento alheio, estará sujeita a receber essas duas formas de análise. Por isso, ao recebê-las, indico a todo o pesquisador a mesma atitude: não ficar na defensiva, aceitando imediatamente a análise e pedindo desculpas (interna ou externamente); nem contestar de imediato, como quem simplesmente reage por paixão. É preciso não deixar de ser um pensador, mesmo na hora do embate, e ativamente fazer (a si mesmo ou a quem dialoga com o mesmo) novas perguntas sobre o julgamento. É preciso esclarecer ao máximo a análise apresentada e somente depois de refletir sobre a mesma tomar posição.
 



Jornal Carta Forense, quarta-feira, 2 de março de 2011

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